segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Tradições Escolas Tibetanas

Comparação Introdutória das Cinco Tradições Tibetanas de Budismo e de Bon

Alexander Berzin
Berlim, Alemanha, 10 de Janeiro de 2000
suplementado com excertos de uma palestra do mesmo tópico
Munique, Alemanha, 30 de Janeiro de 1995

 O Bon como sendo a Quinta tradição do Tibete

A maioria das pessoas fala do Tibete como tendo quatro tradições: Nyingma, Kagyu, Sakya, e Gelug, sendo esta a continuação reformada da tradição mais antiga de Kadam. Contudo, na conferência não-sectária de tulkus (lamas encarnados) e abades, que Sua Santidade o Dalai Lama reuniu em Sarnath, na India, em Dezembro de 1988, Sua Santidade enfatizou a importância de adicionar a tradição tibetana pré-budista de Bon às quatro tradições e da importância de sempre se falar em cinco tradições tibetanas. Ele explicou que a questão importante não é a de considerar ou não o Bon como uma tradição budista. A forma de Bon que se desenvolveu desde o século XI da era comum compartilha o suficiente com as quatro tradições budistas tibetanas para que nós consideremos todas as cinco como uma unidade.

Hierarquia e Descentralização

Antes de examinarmos as similaridades e as diferenças entre as cinco tradições tibetanas, precisamos de nos lembrar que nenhum dos sistemas tibetanos forma uma igreja organizada como, por exemplo, a igreja católica. Nenhuma delas é, em termos de organização, centralizada dessa maneira. Os líderes das tradições, abades e assim por adiante, são principalmente responsáveis por conceder as ordenações monásticas e por transmitir as linhagens de transmissões orais e de empoderamentos tântricos (iniciações). O interesse principal deles não é a administração. A hierarquia afeta principalmente o lugar onde as pessoas se sentam nas grandes ceremonias rituais (pujas); em quantas almofadas elas se sentam; a ordem em que lhes é servido o chá; e assim por diante. Por várias razões geográficas e culturais, o povo tibetano tende a ser extremamente independente e cada mosteiro tende a seguir os seus próprios costumes. Os lugares remotos dos mosteiros, as distâncias enormes entre eles e as dificuldades em viajar e comunicar reforçaram a tendência para a descentralização.

Características comuns

As cinco tradições tibetanas compartilham muitas características em comum, talvez uns oitenta por cento ou mais. As suas histórias revelam que as linhagens não existem como monolíticos separados e isolados dentro de barreiras concretas, sem nenhum contato entre elas. O numero de tradições como sendo cinco foi o resultado dos seus mestres fundadores terem reunido e combinado dentro delas várias linhas de transmissão, vindas principalmente da India. Por convenção, os seus seguidores chamaram a cada uma das suas sínteses “uma linhagem,” mas muitas das mesmas linhas de transmissão também formam parte das misturas das outras tradições.

Tradições Monásticas e Leigas

A primeira coisa que as cinco têm em comum é que contém tradições tanto monásticas quanto leigas. As suas tradições leigas incluem tanto iogues e yoginis casados, engajados na prática intensiva de meditação tântrica, como pessoas leigas comuns cuja prática de Dharma envolve principalmente a recitação de mantras, fazer oferendas nos templos e em casa e a circunvagação de monumentos sagrados. As tradições monásticas de todas as cinco possuem a ordenação completa do monge noviço e a ordenação da monja noviça. A ordenação completa das monjas nunca chegou ao Tibete. As pessoas normalmente entram para os mosteiros e conventos por volta dos oito anos de idade. A arquitetura e o décor monástico são praticamente iguais em todas as tradições.
As quatro escolas budistas compartilham a mesma série de votos monásticos da India, Mula-Sarvastivada. O Bon tem um conjunto de votos ligeiramente diferente, mas a maior parte deles é igual aos votos dos budistas. Uma diferença proeminente é que os monásticos bonpo fazem o voto para se tornarem vegetarianos. Os monásticos de todas as tradições raspam as suas cabeças; mantêm o celibato e vestem o mesmo hábito de cor grená sem mangas, com uma saia e um manto. Os monásticos Bon simplesmente substituiram o azul pelo amarelo nos painéis centrais da veste.

Estudo do Sutra

Todas as tradições tibetanas seguem um caminho que combina o estudo do sutra e do tantra com a prática do ritual e da meditação. Enquanto crianças, os monásticos memorizam um número vasto de textos escolásticos e de rituais e estudam por meio de debates calorosos. Os tópicos do sutra estudados são os mesmos tanto para os budistas como para os bonpos. Eles incluem o prajnaparamita (discriminação de grande alcance, a perfeição da sabedoria) a respeito dos estágios do caminho, o madhyamaka (o caminho do meio) a respeito da visão correta da realidade (vacuidade), do pramana (maneiras válidas de saber) a respeito da percepção e da lógica, e o abhidharma (tópicos especiais do conhecimento) a respeito da metafísica. Os livros didáticos tibetanos para cada tópico diferem ligeiramente nas suas interpretações, não só entre as cinco tradições mas também até entre os mosteiros dentro de cada tradição. Tais diferenças tornam os debates mais interessantes. Na conclusão de um longo curso de estudo, todas as cinco tradições concedem um diploma, de Geshe ou de Khenpo.
Todas as quatro escolas budistas tibetanas estudam as quatro tradições de doutrinas filosóficas do budismo indiano - Vaibhashika, Sautrantika, Chittamatra, e Madhyamaka. Embora as escolas expliquem as doutrinas filosóficas de um modoligeiramente diferente, cada uma delas aceita madhyamaka como apresentando a posição mais sofisticada e precisa. As quatro também estudam os mesmos textos clássicos indianos de Maitreya, Asanga, Nagarjuna, Chandrakirti, Shantideva, e assim por adiante. Além disso, cada escola tem o seu próprio conjunto de comentários tibetanos, que diferem ligeiramente uns dos outros.

Estudo e Prática do Tantra

O estudo e a prática do tantra abrangem todas as quatro ou seis classes do tantra, dependendo do esquema de classificação. As quatro tradições budistas praticam muitas das mesmas figuras búdicas (divindades, yidams), como Avalokiteshvara, Tara, Manjushri, Chakrasamvara (Heruka), e Vajrayogini (Vajradakini). Praticamente nenhuma prática de figura búdica é domínio exclusivo de uma só tradição. Os gelugpas também praticam Hevajra, a figura principal Sakya, e os shangpa kagyupas praticam Vajrabhairava (Yamantaka), a figura principal de Gelug. As figuras búdicas do Bon têm atributos similares às do budismo - por exemplo, as figuras que personificam a compaixão ou a sabedoria – apenas têm nomes diferentes.

Meditação

A meditação em todas as cinco tradições tibetanas envolve empreender longos retiros, frequentemente por três anos e três fases da lua. Os retiros são precedidos por práticas preliminares intensivas, requerendo centenas de milhares de prostrações, repetições de mantras, e assim por diante. O número das preliminares, a maneira de fazê-las, e a estrutura do retiro de três anos diferem ligeiramente de uma escola para a outra. No entanto, basicamente, todos praticam o mesmo.

Ritual

A prática de ritual é também muito similar em todas as cinco tradições tibetanas. Todas elas oferecem tigelas de água, lâmpadas de manteiga e incenso; sentam-se de pernas cruzadas da mesma maneira; usam vajras, sinos, e tamborins damaru; tocam os mesmos tipos de chifres, de címbalos, e de tamborins; recitam em voz alta; oferecem e provam carne e álcool, consagrados durante ceremónias especiais (tsog); e servem chá com manteiga durante todas as assembleias rituais. Seguindo os costumes de origem Bon, todas elas oferecem tormas (cones esculpidos de farinha de cevada misturados com manteiga); invocam os espíritos locais para proteção; afugentam os maus espíritos com rituais elaborados; fazem esculturas de manteiga em ocasiões especiais; e penduram coloridas bandeiras de orações. Todas elas alojam relíquias de grandes mestres em monumentos stupa e os budistas andam à volta no sentido do relógio, enquanto que os bonpos andam à volta no sentido contrário do relógio. Até os seus estilos de arte religiosa são extremamente semelhantes. As proporções das figuras nas pinturas e nas estátuas seguem sempre as mesmas regras fixas.

O Sistema Tulku de Lamas Reencarnados

Cada uma das cinco tradições tibetanas tem também o sistema tulku. Tulkus são linhas de lamas reencarnados, grandes praticantes que controlam seus renascimentos. Quando eles morrem, geralmente durante um tipo especial de meditação na conjuntura da morte, os seus discípulos usam métodos especiais para procurar e encontrar as suas reencarnações entre pequenas crianças - depois de um período adequado ter passado. Os discípulos levam as novas reencarnações de volta às suas casas anteriores e treinam-nas com os melhores professores. Os monásticos e os leigos tratam os tulkus de todas as cinco tradições com o mais elevado respeito. Eles frequentemente consultam os tulkus e outros grandes mestres para um mo (prognóstico) acerca de assuntos importantes das suas vidas, que geralmente são feitos lançando três dados enquanto invocam uma ou outra figura búdica.
Embora todas as tradições tibetanas incluam o treinamento no estudo textual, no debate, no ritual, e na meditação, a ênfase varia de mosteiro a mosteiro, mesmo dentro da mesma escola tibetana, e de indivíduo a indivíduo mesmo dentro do mesmo mosteiro. Além disso, com a exceção dos grandes lamas, dos idosos e doentes, os monges e as monjas se revesam para fazer o trabalho doméstico requerido para manter os mosteiros e conventos, tais como a limpeza dos salões onde a congregação se junta, arranjar das oferendas, buscar a água e combustível, cozinhar e servir o chá. Mesmo que certos monges ou monjas se dediquem principalmente a estudar, debater, ensinar, ou meditar, ainda precisam participar nas orações, recitações e rituais comunais que levam uma parte significativa do dia e da noite de todos. Dizer que os Gelug e Sakya enfatizam o estudo, enquanto que os Kagyu e os Nyingma salientam a meditação é uma generalização superficial.

Linhagens Misturadas

Muitas linhagens de ensinamentos misturam e cruzam-se entre as cinco tradições tibetanas. A linhagem do Guhyasamaja Tantra, por exemplo, passou através do tradutor Marpa tanto à escola Kagyu como à Gelug. Embora os ensinamentos de mahamudra (grande selo) sobre a natureza da mente sejam geralmente associados às linhas Kagyu, as escolas Sakya e Gelug também os transmitem nas suas linhagens. Dzogchen (a grande completude) é um outro sistema de meditação da natureza da mente. Embora associado geralmente à tradição Nyingma, é também proeminente na escola Karma Kagyu da época do terceiro Karmapa e nas tradições de Drugpa Kagyu e de Bon. O quinto Dalai Lama era um grande mestre, não só Gelug, mas também de dzogchen e Sakya, e escreveu muitos textos em cada uma delas. Nós precisamos ter a mente aberta para ver que as escolas tibetanas não se excluem mutuamente. Por exemplo, muitos mosteiros Kagyu fazem pujas ao Guru Rinpoche, embora não sejam Nyingma.

Diferenças

Uso de termos técnicos

Quais são as diferenças principais, então, entre as cinco tradições tibetanas? Uma das diferenças principais diz respeito ao uso de termos técnicos. O Bon analisa a maioria das mesmas coisas que o budismo, mas usa palavras ou nomes diferentes para muitas delas. Mesmo dentro das quatro tradições budistas, várias escolas usam os mesmos termos técnicos com definições diferentes. Isto é realmente um grande problema quando tentamos compreender o budismo tibetano em geral. Até dentro da mesma tradição, autores diferentes definem os mesmos termos de uma maneira diferente; e até o mesmo autor às vezes define os mesmos termos de uma maneira diferente nas suas várias obras. Se não soubermos as definições exactas que os autores estão usando para os seus termos técnicos, podemos ficar extremamente confusos. Deixem-me dar alguns exemplos.
Os gelugpas dizem que a mente, significando a percepção dos objetos, é impermanente, enquanto que os kagyupas e nyingmapas afirmam que é permanente. As duas posições parecem ser contraditórias e mutuamente exclusivas; mas, na verdade, não são. Para os gelugpas, “impermanente” quer dizer que a percepção dos objectos muda de momento a momento, no sentido em que os objectos dos quais nós estamos cientes mudam a cada momento. Por “permanente,” os kagyupas e nyingmapas querem dizer que a percepção dos objetos continua para sempre; a sua natureza básica permanece, não sendo afetada por nada e, assim, nunca muda. Cada lado concordaria um com o outro, mas porque usam os mesmos termos com significados diferentes, parece que se contradizem completamente. Os kagyupas e os nyingmapas diriam que a percepção individual de objetos certamente percebe ou conhece objetos diferentes a cada momento; enquanto que os gelugpas concordariam certamente que as mentes individuais são contínuos, sem nenhum começo nem fim, de percepção de objetos.
Outro exemplo é a expressão “surgir dependente.” Os gelugpas dizem que tudo existe em termos de surgir dependente, significando que as coisas existem como “isto” ou “aquilo” dependentemente das palavras e dos conceitos serem capazes de as rotular validamente como “isto” ou “aquilo”.” Os fenômenos conhecíveis são o que as palavras e os conceitos usados para eles se referem. Nada existe do lado dos fenômenos conhecíveis que, pelo seu próprio poder, lhes dá as suas existências e identidades. Assim, para os gelugpas, a existência em termos do surgir dependente é equivalente ao vazio: a ausência total de maneiras impossíveis de existir.
Os kagyupas, por outro lado, dizem que o verdadeiro fenômeno último está para além do surgir dependente. Parece que eles estão afirmando que o último tem uma existência independente, estabelecida pelo seu próprio poder, e não apenas uma existência que surge dependentemente. Esse não é o caso. Os kagyupas, aqui, estão usando o “surgir dependente” em termos dos doze elos do surgir dependente. O verdadeiro fenômeno último ou mais profundo está para além do surgir dependente no sentido de que ele não surge em dependência do não-apercebimento da realidade (da ignorância). Os gelugpas também aceitariam essa afirmação. Eles estão apenas usando o termo “surgir dependente” com uma definição diferente. Muitas das discrepâncias nas afirmações das escolas tibetanas surgem devido a tais diferenças nas definições de termos essenciais. Esta é uma das fontes principais de confusão e má compreensão.

Ponto de Vista da Explicação

Outra diferença entre as tradições tibetanas é o ponto de vista a partir do qual elas explicam os fenômenos. Segundo Jamyang-kyentse-wangpo, um mestre Rimey (movimento não-sectário), os gelugpas explicam do ponto de vista da base, isto é, do ponto de vista dos seres ordinários, não-budas. Os sakyapas explicam do ponto de vista do caminho, isto é, do ponto de vista daqueles que estão extremamente avançados no caminho para a iluminação. Os kagyupas e os nyingmapas explicam do ponto de vista do resultado, isto é, do ponto de vista de um Buda. Como esta diferença é muito profunda e complicada , deixem-me só demonstrar um ponto de partida para explorarmos a questão.
Do ponto de vista da base, só podemos focalizar ou na vacuidade ou na aparência, numa de cada vez. Assim, os gelugpas até explicam a meditação na vacuidade dos seres arya deste ponto da vista. Um arya é um ser altamente realizado, que possui uma percepção direta, não-conceptual do vazio. Os kagyupas e os nyingmapas enfatizam a inseparabilidade das duas verdades, vacuidade e aparência. Do ponto de vista de um Buda, não é possível falar apenas sobre o vazio ou apenas sobre a aparência. Assim, eles falam do ponto de vista a partir do qual tudo já é completo e perfeito. A apresentação Bon de dzogchen está de acordo com este tipo de explicação. Um exemplo da apresentação Sakya - do ponto de vista do caminho - é a afirmação de que a mente de luz clara (a consciência mais sutíl de cada ser individual) é de felicidade plena. Se isso fosse verdade ao nível da base, então a mente de luz clara que se manifesta durante a morte seria de felicidade plena, mas esse não é o caso. No caminho, contudo, nós fazemos com que a mente de luz clara se torne numa mente de felicidade plena. Assim, quando os sakyapas falam da mente de luz clara como felicidade plena, o fazem sob o ponto de vista do caminho.

O Tipo de Praticante que é Enfatizado

Uma outra diferença surge do fato de que existem dois tipos de praticantes: aqueles que progridem gradualmente por etapas e aqueles a quem tudo acontece de uma só vez. Os gelugpas e os sakyapas falam principalmente do ponto de vista daqueles que se desenvolvem por estágios; os kagyupas, os nyingmapas e os bonpos, especialmente nas suas apresentações da classe mais elevada do tantra, falam frequentemente do ponto de vista daqueles a quem tudo acontece de uma só vez. Embora as explicações daí resultantes possam dar a aparência de que cada lado afirma apenas um modo de se progredir ao longo do caminho, a questão é apenas qual é a que eles enfatizam nas suas explicações.

Abordagem à Meditação sobre a Vacuidade no Tantra Mais Elevado

Como já mencionei, todas as escolas tibetanas aceitam Madhyamaka como o ensinamento mais profundo, mas as suas formas de compreender e de explicar os diferentes sistemas budistas indianos de doutrinas filosóficas diferem ligeiramente. A diferença manifesta-se mais significativamente nas formas como elas compreendem e praticam Madhyamaka no tantra mais elevado. Como isto também é um ponto muito complexo e profundo, vamos agora tentar obter apenas uma compreensão inicial.
A prática mais elevada do tantra leva-nos a alcançar a percepção não-conceptual direta do vazio com a mente de luz clara mais sutíl. Assim, dois componentes são necessários: a consciência da luz clara e a percepção correta do vazio. Qual delas recebe a ênfase na meditação? Com a abordagem da “ vacuidade-do-eu”, a ênfase na meditação está no vazio como sendo o objeto percebido pela consciência da luz clara. A vacuidade-do-eu significa a ausência total de naturezas auto-existentes que dão aos fenômenos as suas identidades. Todos os fenômenos são vazios de existirem desta forma impossível. Os gelugpas, a maioria dos sakyapas e os drikung (drigung) kagyupas enfatizam esta abordagem; embora as suas explicações sejam ligeiramente diferentes a respeito das formas impossíveis como que os fenômenos são vazios de existir.
A segunda abordagem é enfatizar a meditação na mente de luz clara, que é vazia de todos os níveis mais grosseiros da mente ou da consciência. Neste contexto, a consciência de luz clara recebe o nome “vacuidade-do-outro”; é vazia de todos os restantes níveis mais grosseiros da mente. A vacuidade-do-outro é a abordagem principal dos karma, drugpa, shangpa kagyupas, dos nyingmapas e de parte dos sakyapas. Cada um, naturalmente, tem uma maneira ligeiramente diferente de explicar e de meditar. Assim, uma das principais áreas de diferença entre as escolas tibetanas é a forma como definem a vacuidade-do-eu e a vacuidade-do-outro; se aceitam uma, a outra, ou ambas; e o que enfatizam na meditação para obter a consciência de luz clara do vazio.
Não obstante esta diferença a respeito da vacuidade-do-eu e da vacuidade-do-outro, todas as escolas tibetanas ensinam métodos para se alcançar a consciência de luz clara ou, nos sistemas dzogchen, o seu equivalente: rigpa, a pura consciência. Aqui, aparece uma outra diferença importante . Os kagyupas, sakyapas e gelugpas não-dzogchen ensinam a dissolução dos níveis mais grosseiros da mente ou da consciência por estágios, até se alcançar a mente de luz clara. A dissolução é realizada trabalhando com os canais de energia sutíl, ventos, chakras, e assim por adiante, ou gerando estados de consciência de felicidade progressivamente mais plena dentro dos sistemas de energia sutil do corpo. Os nyingmapas, os bonpos e os praticantes das linhagens dzogchen de Kagyupa tentam reconhecer e, desse modo, ter acesso ao rigpa subjacente aos níveis mais grosseiros da consciência, sem ter de primeiramente dissolver os níveis mais grosseiros. Não obstante, porque no início do seu treinamento se engajaram em práticas com os canais de energia, os ventos e os chakras, eles experienciam que os níveis mais grosseiros da sua consciência se dissolvem automaticamente sem esforço consciente adicional quando finalmente reconhecem e alcançam o rigpa.

Se a Vacuidade Pode Ser Indicada por Palavras

Outra diferença surge ainda sobre se a vacuidade pode ser indicada por palavras e conceitos ou se está para além destes. Esta questão põe em paralelo uma diferença na teoria da cognição. Os gelugpas explicam que com a cognição sensorial não-conceptual, por exemplo a visao, podemos perceber não só formas e cores, mas também objetos, como por exemplo um vaso. Os sakyapas, os kagyupas e os nyingmapas afirmam que a cognição visual não-conceptual percebe apenas formas e cores. Perceber as formas e as cores como objetos, tal como um vaso, ocorre com a cognição conceptual um nanosegundo depois.
De acordo com esta diferença sobre a cognição não-conceptual e conceptual, os gelugpas dizem que a vacuidade pode ser indicada por palavras e conceitos: a vacuidade é aquilo que a palavra “vacuidade” se está referindo. Os sakyapas, os kagyupas e os nyingmapas afirmam que a vacuidade – do eu ou do outro – está para além das palavras e conceitos. A posição deles concorda com a explicação Chittamatra: as palavras e os conceitos para as coisas são construções mentais artificiais. Quando você pensa “mãe,” a palavra ou o conceito não é a sua mãe. A palavra é meramente um símbolo usado para representar a sua mãe. Na verdade, você não pode pôr a sua mãe numa palavra.

Uso da terminologia de Chittamatra

De fato, os sakyapas, os kagyupas e os nyingmapas usam grande parte do vocabulário de Chittamatra, até nas suas explicações sobre Madhyamaka, particularmente em termos do tantra mais elevado. Os gelugpas raramente o fazem. No entanto, quando os não-gelugpas usam termos técnicos Chittamatra nas explicações Madhyamaka sobre o tantra mais elevado, eles os definem diferentemente de quando eles os usam estritamente em contextos de sutra de Chittamatra. Por exemplo, a alayavijnana (consciência-fundação) é um dos oito tipos de consciência limitada no sistema de Chittamatra de sutra. Nos contextos Madhyamaka dos tantras mais elevados, a consciência-fundação é um sinonimo para a mente de luz clara que continua mesmo depois da budeidade.

Sumário

Estas são algumas das principais áreas de diferenças sobre pontos filosóficos profundos e de meditação. Nós poderíamos entrar em grandes detalhes sobre estes pontos, mas penso que é muito importante nunca perdermos de vista o fato de que cerca de oitenta por cento, ou mais, das características das escolas tibetanas são as mesmas. As diferenças entre as escolas são, na sua maior parte, devidas à forma como elas definem os termos técnicos, o ponto de vista a partir do qual eles explicam, e que abordagem à meditação usada para se obter uma consciência de luz clara da vacuidade.

Práticas Preliminares

Ademais, o treinamento geral que os praticantes recebem em cada uma das tradições é o mesmo. Ē só que os estilos de algumas das práticas são diferentes. Por exemplo, a maioria dos kagyupas, nyingmapas e sakyapas completam todo o conjunto das preliminares para a prática do tantra (as cem mil repetições de prostrações, e assim por diante) como um grande evento durante a parte inicial do treinamento, frequentemente com um retiro separado. Os gelugpas tipicamente encaixam-nas, uma de cada vez, nos seus programas, geralmente depois de terem acabado os seus estudos básicos. No entanto, os praticantes de todas as tradições repetem o conjunto todo das preliminares no início de um retiro de três anos.

Retiros de Três Anos

Num retiro de três anos, os kagyupas, nyingmapas e sakyapas tipicamente treinam num número de práticas de meditação do sutra e depois nas práticas rituais básicas das figuras búdicas principais das suas linhagens, devotando vários meses sucessivos para cada prática. Eles também aprendem a tocar os instrumentos musicais cerimoniais e a fazer oferendas de torma esculpidas. Os gelugpas obtêm o mesmo treinamento em meditação básica e ritual, encaixando cada prática, uma de cada vez, nos seus programas, assim como eles fazem com as preliminares. O retiro gelug de três anos focaliza-se na prática intensiva de uma só figura búdica. Os não-gelugpas devotam normalmente três ou mais anos a uma só prática do tantra apenas nos seus segundos ou terceiros anos de retiro, e não no seu primeiro ano.
A participação na completa prática ritual monástica de qualquer figura búdica requer que se tenha completado um retiro de vários meses, envolvendo a repetição de vários mantras centenas de milhares de vezes. Nós não podemos fazer uma auto-iniciação sem ter completado esta prática. Se os gelugpas cumprem esta exigência fazendo apenas um retiro de vários meses ou os non-gelugpas fazem-no como parte de um retiro de três anos, a maioria dos monásticos de todas as tradições completa tais retiros. Contudo, apenas os praticantes mais avançados de cada tradição fazem retiros intensivos de três anos focalizados numa só figura búdica.

Conclusão

É muito importante mantermos um ponto de vista não-sectário no que diz respeito às cinco tradições tibetanas de Budismo e de Bon. Como Sua Santidade o Dalai Lama sempre enfatiza, estas diferentes tradições compartilham o mesmo objetivo final: todas elas ensinam métodos para alcançarmos a iluminação, para beneficiarmos os outros tanto quanto possível. Cada tradição é igualmente eficaz em ajudar os seus praticantes a alcançar este objetivo e, assim, elas se encaixam harmoniosamente, mesmo que não seja de maneira simples. Ao fazermos um estudo comparativo das cinco tradições, mesmo a nível introdutório, nós aprendemos a apreciar os pontos fortes e únicos da nossa própria tradição e a ver que cada tradição tem as suas próprias características especiais. Se nós desejamos transformarmo-nos em budas e beneficiar a todos, precisamos eventualmente aprender a gama completa das tradições budistas e como todas elas se encaixam, de modo a sermos capazes de ensinar pessoas de inclinações e de capacidades diferentes. Se não, corremos o risco de “abandonar o Dharma,” que significa desacreditar um ensinamento autêntico do Buda, incapacitando-nos, deste modo, de sermos capazes de beneficiar aqueles a quem o Buda viu que os ensinamentos se adequam.
É importante, no final, seguirmos uma só linhagem na nossa prática pessoal. Ninguém podem alcançar o topo de um edifício tentando subir cinco escadas diferentes simultaneamente. Não obstante, se as nossas capacidades permitirem, estudar depois as cinco tradições ajuda-nos a aprender os pontos fortes de cada uma. Isto, por sua vez, pode ajudar-nos a ganhar claridade sobre estes pontos nas nossas próprias tradições quando eles aqui recebem um tratamento menos elaborado. Isto é o que Sua Santidade o Dalai Lama e todos os grandes mestres sempre enfatizam.
É também muito importante vermos que para qualquer coisa que fazemos - seja na esfera espiritual ou na esfera material - há talvez dez, vinte, ou trinta maneiras diferentes de se fazer exactamente a mesma coisa. Isto ajuda-nos a evitar o apêgo à maneira em como fazemos algo. Somos capazes de ver a essência mais claramente, em vez de desenvolvermos a atitude de que “esta é a maneira correcta de fazer as coisas, porque é minha maneira correta !”

Nenhum comentário: